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Famílias contraem dívidas milionárias na busca por leitos particulares de UTI e tratamentos contra a Covid

Foto: Reuters/Amanda Perobelli

Da redação     -
02 de junho de 2021

Sem leitos de UTI disponíveis e sem acesso a tratamentos específicos, parentes de infectados pela Covid-19 recorreram a hospitais particulares e a terapias específicas, sobretudo durante a segunda onda da pandemia. Segundo o relato de famílias de pacientes, contas em valores milionários e falta de apoio dos convênios mostram um outro lado dos dramas da pandemia.

De acordo com o Relatório Covid-19, divulgado pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), no período entre 3 de março de 2020 e 23 maio de 2021 foram registradas 21.783 mil reclamações sobre o atendimento a pacientes da Covid. A maior parte (12.322) tratava da negativa ou ausência de rede disponível para exames e tratamento.

A família Hilgemberg é uma das que atualmente enfrenta um desdobramento da busca por atendimento no começo deste ano: sem encontrar hospitais que dispusessem de leitos de UTI e ECMO na rede credenciada do seu plano de saúde em Ponta Grossa (PR), a família optou por transferir o patriarca para a capital paulista.

Ao fim do período de internação, a dívida: uma conta avaliada em mais de R$ 1,8 milhão.

Embora seja fundamental para a respiração, a terapia não é barata e tampouco é facilmente encontrada. O custo para o paciente vai depender da gravidade do caso, do tempo de uso e do hospital. Segundo a Sociedade Internacional Extracorporeal Life Support Organization (Elso), responsável por interligar os centros que oferecem a terapia, existem apenas 29 centros registrados no Brasil.

Entre os poucos hospitais que possuem o equipamento necessário para a ECMO está o Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo, para onde o produtor rural Osmar Hilgemberg Junior foi transferido.

Junior, que completaria 65 anos no mês de junho, morreu em 28 de fevereiro em decorrência de uma trombose no fígado, consequência indireta dos tratamentos para a Covid-19.

A família suspeita que Junior tenha contraído o vírus da Covid-19 na cerimônia de posse da prefeita e dos vereadores eleitos em 2020, onde assumiu o cargo de Secretário de Agricultura, Pecuária e Abastecimento de Ponta Grossa, na região dos Campos Gerais do Paraná.

O evento aconteceu em 1° de janeiro. Junior foi hospitalizado no dia 11.

As contas a pagar começaram a surgir quando Junior ainda estava em Ponta Grossa e os parentes decidiram por uma transferência. O então recém-nomeado secretário do município foi intubado dois dias após ter dado entrada no Hospital Geral da Unimed, pertencente ao plano de saúde da família.

Assim ele permaneceu por duas semanas até que os médicos informaram aos familiares que seria necessário o uso de ECMO.

“Os médicos explicaram que não havia mais nada a ser feito a não ser transferi-lo para outro hospital. Ou transferia ou ele viria a óbito”, conta Osmar Hilgemberg Neto, que leva o mesmo nome do pai.

Como nenhum hospital na região tinha o equipamento necessário para a terapia, os familiares passaram a buscar vagas em outros estados. Com medo de que a demora no sistema de autorização do plano de saúde agravasse a situação do patriarca, a família assumiu o ônus de interná-lo em um hospital particular.

Consultada pelo G1, a Unimed informou que não possui registros de qualquer solicitação de liberação de tratamento para o paciente.

A família conseguiu uma vaga no Hospital Israelita Albert Einstein perante o pagamento inicial de R$ 185 mil para “garantir a reserva”, como explicou Neto. Junior foi transferido para São Paulo por meio de uma UTI aérea já com a ECMO em funcionamento, a um custo de R$ 20,5 mil o translado e R$ 100 mil da equipe médica.

“A médica falou que se ele não começasse a ECMO no dia seguinte, ele morreria. Não tinha como eu aguardar uma semana ou dez dias para abrir protocolo com o convênio. Enquanto ele estava internado, demos início à papelada, mas eles pediram tantos documentos que, nesse meio tempo, a vida do meu pai acabou”, conta Neto.

Consultado pelo G1, o Hospital Israelita Albert Einstein informou que “salvos em casos de urgência e emergência, o Einstein solicita aos pacientes sem planos de saúde, no momento de sua entrada no hospital, o pagamento parcial antecipado em qualquer tipo de internação, não apenas nas relativas à Covid-19. Esta forma de pagamento é comum a outros hospitais privados”.

O caso não é isolado. A família Santos passou por uma situação semelhante ao internar o patriarca, o advogado Aparecido dos Santos, de 64 anos, no Hospital Alemão Oswaldo Cruz, em São Paulo.

Segundo a família, o advogado estava em um hospital pertencente ao Grupo NotreDame Intermédica, que não realizava a terapia com ECMO, embora fosse indicada para o seu tratamento. A família tentou a transferência de Santos para o Hospital Alemão, que fazia parte da rede credenciada, mas o pedido foi negado pela administradora.

Procurado pelo G1, o Grupo Notre Dame Intermédica afirmou que não irá se manifestar sobre o caso do paciente Aparecido dos Santos.

Os familiares internaram Aparecido como paciente particular no Hospital Oswaldo Cruz. Para internação em caráter particular nesse hospital, os filhos precisaram adiantar o valor de R$ 100 mil.

Santos permaneceu 42 dias internado, até a data do seu falecimento, no dia 26 de fevereiro. Atualmente, a família possui uma dívida de mais de R$ 1,2 milhão com o hospital.

Consultado pelo G1, o Hospital Alemão Oswaldo Cruz informou que solicita o pagamento adiantado “apenas nos casos particulares, não cobertos por planos de saúde, e que não decorrem de atendimentos presenciais de urgência ou emergência”

“Quando a gente vê na TV as estatísticas, você enxerga números, até que esse número se torna alguém que você ama. Quando é o teu ente, não importa, ele não é um número, não é um artigo indefinido. Por isso, você faz qualquer coisa, qualquer coisa pra você ter aquela pessoa junto com você”, comenta Adriana Bonano Santos, filha de Aparecido.

Na visão de quem acompanha as famílias, o momento da internação e todas as preocupações envolvidas não ajudam na análise das condições envolvidas.

“[O contrato] é praticamente um cheque em branco. O hospital diz para o paciente que vai cobrar um valor referente à parte hospitalar, mas nessa conta não estão incluídos os honorários da equipe médica”, afirma Rafael Robba, advogado especializado em direito da saúde.

“Durante o período de internação, pagamos diárias de R$ 1.600 para cada um dos três médicos que cuidavam do meu pai. Os pagamentos eram realizados a cada duas semanas”, revela Neto.

Já na primeira quinzena de internação, a conta do hospital que era esperada apenas no final do tratamento chegou e já somava cerca de R$ 800 mil. A família, que já havia realizado o pagamento da taxa inicial de internação, da UTI aérea e dos médicos, precisou realizar uma vaquinha para conseguir adiantar parte do valor devido.

De acordo com Robba, os hospitais não podem parar o tratamento e nem pedir que o paciente internado se retire por conta da ausência de pagamento das contas parciais.

“O hospital pode cobrar a conta, mas se a forma que a cobrança foi feita colocar em risco a saúde ou a vida do beneficiário, seja por meio de uma ameaça de transferência ou de suspensão de atendimento, isso pode ser considerado uma prática abusiva”, esclarece Robba.

É considerado crime, de acordo com o Código Penal (Art. 135-A), caso um hospital se negue ou condicione o atendimento de urgência a uma cobrança de valores iniciais. Nestes casos, o atendimento é realizado e, assim que o paciente estiver fora de risco de vida, ele pode ter a sua transferência realizada para o SUS ou hospital de sua preferência. Os valores do atendimento serão cobrados posteriormente.

“A cobrança dessa taxa inicial não pode, de forma alguma, impedir o atendimento de urgência”, afirma Robba.

Em caso de dívida, os hospitais podem entrar com uma ação contra o inadimplente por um período de até cinco anos. Depois que o processo for aberto por parte do hospital, essa dívida não será perdoada pelas instituições bancárias ou pela Justiça.

O saldo total devedor da família Hilgemberg ao Hospital Israelita Albert Einstein, descontando os valores pagos previamente, é de R$ 1.210.768,29. No Hospital Alemão Oswaldo Cruz, a família Santos deve R$ 1.287.050,91.

As duas famílias afirmam que buscam na Justiça que as contas hospitalares sejam pagas pelos seus respectivos planos de saúde.

Histórias como essas não são incomuns. De acordo com o Relatório Covid-19, divulgado pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), no período entre 03 de março de 2020 e 23 maio de 2021 foram registradas 21.783 mil reclamações relacionadas à serviços de atendimento ao coronavírus.

A maior parte das reclamações (12.322) se referem à negativa ou ausência de rede para exames e tratamento para pacientes com Covid. A inadimplência, tanto para planos individuais ou familiares quanto para coletivos, continuam próximos dos níveis históricos.

“Destaca-se que em fevereiro de 2021, assim como em maio e outubro de 2020 e janeiro de 2021, foram identificados valores mais elevados de inadimplência, contudo, não impactando na mesma proporção os valores de receitas com contraprestações apresentadas para o mesmo período”, afirmou a Agência no boletim Covid-19 de março deste ano.

O G1 procurou o Grupo Notre Dame Intermédica e a Unimed de Ponta Grossa para esclarecer a situação das famílias. Em nota enviada pela assessoria de imprensa, o Grupo Notre Dame Intermédica afirmou que não irá se manifestar sobre o caso do paciente Aparecido dos Santos.

Já a Unimed afirma que não possui registros de qualquer solicitação de liberação de tratamento.

“Em relação ao caso específico citado pela reportagem, a Unimed Ponta Grossa esclarece que não houve registro de qualquer solicitação de liberação de tratamento mencionado para o cliente junto à operadora, nem tampouco reembolso. Reforça que tem sua rede própria e credenciada toda preparada e focada na assistência de qualidade aos seus clientes durante a pandemia de Covid19, e que o compromisso é com uma assistência de qualidade, satisfação dos clientes e o melhor resultado possível diante desta complexa patologia que todos enfrentamos”.

Consultado pelo G1, ambos os hospitais explicaram que o pagamento realizado pelas famílias não diz respeito à reserva de vagas, mas sim a um tratamento padrão exigido aos pacientes particulares, no momento anterior à internação, não assegurados por convênio médico.

Em nota, a Associação Nacional de Hospitais Privados (Anahp) afirmou que a legislação impede o pagamento antecipado em caso de atendimento emergencial.

“A legislação impede o pagamento antecipado em qualquer caso de atendimento emergencial. Nos demais, trata-se de situação a ser acordada entre paciente, hospital e seguradora. Como entidade associativa, a Associação Nacional e Hospitais Privados (Anahp) não pode nem deve participar ou conhecer detalhes de operações comerciais ou financeiras de seus associados”.

O Hospital Israelita Albert Einstein informou ao G1 que solicita pagamento parcial antecipado de pacientes particulares sem plano de saúde em qualquer tipo de internação, não apenas nas relativas à Covid-19. 

“Salvos em casos de urgência e emergência, o Einstein solicita aos pacientes sem planos de saúde, no momento de sua entrada no hospital, o pagamento parcial antecipado em qualquer tipo de internação, não apenas nas relativas à Covid-19. Esta forma de pagamento é comum a outros hospitais privados.

Os pacientes ou seus responsáveis podem solicitar a qualquer tempo informações sobre a conta hospitalar para monitorar as despesas e/ou realizar pagamentos parciais ao longo do período de internação”.

Em nota enviada ao G1, o Hospital Alemão Oswaldo Cruz informou que o adiantamento do pagamento é um procedimento padrão exigido de todos os pacientes particulares, não cobertos por planos de saúde. Leia abaixo:

“O Hospital Alemão Oswaldo Cruz informa que não exige qualquer pagamento como forma de garantia de vaga em UTI. A instituição observa plenamente a legislação em vigor e não exige qualquer pagamento ou depósito a título de garantia para qualquer atendimento de urgência, e muito menos como forma de garantir uma vaga na UTI a um paciente desassistido.

O que se solicita, apenas nos casos particulares, não cobertos por planos de saúde, e que não decorrem de atendimentos presenciais de urgência ou emergência, caso do paciente mencionado na reportagem, é um princípio de pagamento estimado com base nos custos já previstos do tratamento.

“O referido paciente já se encontrava devidamente assistido em outra instituição hospitalar e foi solicitada sua a transferência para o Hospital Oswaldo Cruz. Seguindo o protocolo para este tipo de ocorrência, foi solicitada a realização de antecipação de pagamento relativo às despesas estimadas.

O valor solicitado a título de princípio de pagamento cobriu apenas um curto período de tempo de internação, representando pequena parcela do valor total da conta hospitalar” (g1.globo.com)